O Pânico é Recíproco.
Entretanto, nos meus primeiros passos de Ensino
Básico, no 1.º ano. Aquela primeira impressão, por estar rodeado de lobos,
levou-me a assumir uma postura de ação perante todas as situações. Foram as
manifestações involuntárias de testosterona que me levaram a rivalizar com os
outros machos da minha espécie. Penso que o objetivo de todos nunca foi bem
claro, apenas, todos e qualquer um de nós, recorria a comportamentos de imposição
da liderança que eram inatos, puramente animalescos, para se impor sobre todos os outros. Era energia pura, genuína
e darwinista.
Na minha turma havia um grupo que se juntava e
jogava futebol, mas, hierarquicamente, nós nunca ficávamos com o campo
polidesportivo. Se tivéssemos sorte e se alguma equipa desistisse, conseguíamos
jogar atrás da escola, num piso de pedra que media cerca de 6 por 10 metros. O
mais impressionante era que também não tínhamos direito a bola. Naquele espaço
o jogo tinha como substituto da bola uma lata de coca-cola ou outra coisa que
servisse para pontapear.
Como eramos de 1.º ano, nem todos os dias eram de
sorte. Quando não havia a oportunidade de jogar futebol, recorríamos a outros
jogos, como a macaca, a apanhada e, o mais excitante de todos, os homens a
apanhar as mulheres (e vice-versa). Este último foi aquele que mais me conectou
com o sexo oposto. Claramente que eu não percebia nada daquilo que estava a
acontecer. Ainda não percebo. Apenas gostava dos sentimentos provocados por
aquela brincadeira.
Foi a partir daí que comecei a receber uma atenção
diferente por parte de uma menina. Agora tenho algum vocabulário que me permite
descreve-la, mas na altura, a única coisa que conseguia sentir era uma energia
dócil, através de uma imagem afável, recetiva e frágil. Chama-se Luísa.
De cabelos pretos, lisos, que caíam pelas costas.
Olhos castanhos, grandes e brilhantes, com um toque de ternura que hipnotizava
quem se cruzava com o seu olhar. A imagem dela e a forma como se movia e
expressava, transmitia uma fragilidade enorme. Todos nós com 6 anos somos frágeis.
Mas a Luísa, no seu todo, transmitia paz e calma. Trinta segundos de olhar
colado no dela e o mundo era já um sítio melhor para viver.
Ela não brincava tanto como as outras meninas da
turma. Mas estava sempre lá e fazia questão de acompanhar a horda, para não
perder nada nem ninguém. Aquela fragilidade aparente era realmente verificada
na prática pois, sempre que ela se juntava a nós nos jogos, acabava por se
magoar.
Num dia, como qualquer outro, cheguei à escola e
deparei-me com a Luisa com os olhos semicerrados e fechada sobe si própria.
Mesmo não sendo alguém minimamente extrovertida, ela sempre irradiou muita
energia. Reparei que tinha o braço engessado. Senti-me triste.
Não sei se foi inconsciente ou genuíno. Eu senti uma
necessidade enorme para me aproximar. Queria ver, sentir e ajudar. Algo dentro
de mim estimulou este sentimento digno de um Ser humano. Um sentimento
altruísta, desprovido de maldade.
Foi completamente diferente daquilo que senti com a
Celina. Eu não queria nada dela em específico, mas senti que tinha algo que
podia ajuda-la a ter um bocadinho de vida melhor. Não sei se pareço convencido, mas foi o
que realmente senti.
Apesar de gostar do reconhecimento, não gosto, nem
nunca gostei de ser o centro das atenções. As pessoas, no geral, incomodam-me.
Há sempre a tendência para exagerar nos elogios ou na censura. A maior parte
das pessoas não sabe se comportar adequadamente. Eu inclusive.
Com o passar do tempo dei por mim a prestar mais
atenção na Luísa. Aquele braço partido, juntamente com aquela dócil imagem,
provocou em mim um sentimento de proteção inesperado. Lá está, ninguém ensina
sentimentos às crianças, por isso crescemos confusos e sem saber o que fazer
nem como o fazer. De tudo o que eu já tinha vivenciado no campo sentimental,
nada tinha sido parecido com aquilo.
Subtilmente fui me aproximando dela. As minhas
rotinas foram se alterando. Sempre que podia, ajudava-a a arrumar a sua
cadeira, a apanhar a mochila do chão ou apanhar qualquer coisa que caía no
chão. Já não jogava tanto futebol como antes, mas não deixava de jogar por sua
causa.
Não existem regras nas relações. Sejam elas de que
natureza for. O que nos molda são as nossas experiências e a interpretação que
fazemos delas. Não podemos aplicar o conhecimento adquirido, taxativamente,
porque todos os contextos são deferentes. As pessoas são iguais nas suas
diferenças.
Eu senti que a Luísa reparou na minha alteração de
comportamento. Mas não o podia confirmar porque tinha vergonha de lhe
perguntar. O que dizem das pessoas duras é verdade. Toda a dureza apenas serve
para esconder as nossas fraquezas. É um mecanismo de defesa.
Enfim, fomos para férias e regressamos após duas
semanas, depois da páscoa. Entrei na escola. Ultrapassei a matilha
e, involuntariamente, num passo acelerado, dirigi-me à sala de aula. Olhei como
quem não procurava nada, com a cara de mau do costume. Fiz um compasso de
espera, suspirei antes de entrar.
No momento em que ia entrar na sala de aula fiquei
sem ver, tudo ficou escuro. Foi desconcertante, inesperado e, ao mesmo tempo,
eletrizante. Senti um calor nos olhos. Estavam a ser tapados por duas pequenas mãos. Não fazia ideia quem era, mas deduzi imediatamente que seria a Luísa. Aquele
intervalo de tempo, à espera de perceber se era realmente ela, entusiasmou-me.
Quando me virei para trás, comprovei que era a Luísa. Já não tinha gesso no
braço, estava curada. Que felicidade.
Os momentos seguintes foram de pura aflição. Toda
esta aproximação desenvolveu-se devido a uma carência. Eu pensei que ela
precisava de ajuda e, nesse sentido, eu aproximei-me e ajudei-a. A nossa
relação floresceu sustentada na lesão dela. Está tudo bem com ela, e agora?
Os dias seguintes foram estranhos. Sentíamos a
necessidade de estar perto um do outro, mas nenhum dos dois tinha competências
para ultrapassar aquele constrangimento. Havia razão, mas faltava o motivo. Nenhum
de nós conseguiu desfazer o impasse.
Viver é complexo. Há quem diga que, com o tempo, as
coisas tornam-se mais fáceis. Mas isso não faz sentido nenhum. Se não fizermos
nada diferente ao longo do tempo, é que a vida se tornará fácil. Previsível.
Monótona. Repetitiva. Ter a resposta não significa ter a solução.
Nós, definitivamente, não encontramos a solução. Eu
e a Luísa paramos naquele instante, atónitos e impotentes. Infelizmente nenhum
de nós sabia responder a reciprocidade do sentimento.
O que é que faltou?
--
Sem ressentimentos,
ASS: Stero
Comentários
Enviar um comentário