Ficou a Mentira

 


À medida que fui crescendo cultivei uma capacidade extraordinária para digerir adversidades. Estão a ver aquelas pessoas que dizem que a vida foi a sua melhor escola e todas as suas dificuldades acabaram por torna-los mais fortes? Não consigo interpretar as coisas desta maneira, é demasiado simplista.

Quando tens a alegria de passar por bons momentos ou momentos que se encontram dentro da tua expetativa, nunca irás evita-los só para sentir adversidade e, consequentemente, aprender. Gosto de pensar que existem várias soluções para resolver a equação da felicidade.

Depois do meu primeiro desaire afetivo – devem se lembrar da Celina – comecei a ter as minhas primeiras desavenças. Obviamente senti-me, não é bem traído, mas com um sentimento de impotência para com os acontecimentos. Tava fodido com o que me aconteceu e, como boa criança que fui, tive os meus episódios de vingança.

Coitado do Pedro, não merecia nada daquilo que lhe aconteceu ao longo do último ano de infantário. A mente cruel de uma criança ferida, sem qualquer tipo de discernimento e ponderação, faz com que coisas muito más aconteçam.

O meu infantário tinha uma área de recreio que era maioritariamente coberta com um cascalho vermelho. Nesse mesmo espaço tinha do lado direito um baloiço, um escorrega e um balancé e, do lado esquerdo, uma espécie de labirinto em espiral. O espaço era amplo e, volto a frisar, tinha muito cascalho. Pedras grandes. Para uma criança, verdadeiras armas brancas.

Então. Eu como era pequenino, todos gostavam de fazer brincadeiras comigo. Atirar-me ao ar, agarrar-me, entre outras coisas que, para mim, irritavam-me profundamente. Não conhecia o Código de Hamurabi, mas rapidamente tornei-me seu seguidor. Por cada pontapé ou chapada que levei, devolvi uma pedrada ou uma dentada assassina.  Ok, reconheço que acabei por exagerar um bocadinho. Imaginem quem foi a minha vítima preferida?

Apesar de tudo isto, houve alguém a entender que a minha energia deveria ser canalizada para as Artes. Então, nesse ano, penso que estava dentro do currículo, a minha “sala”, como Finalista da Creche, ficou incumbida de representar a Bela Adormecida. Um clássico da Disney. Quem foi o príncipe, quem foi? Ah! Pois é. Foi aqui o menino.

Agora que penso… dass, outra vez manipulado. As minhas educadoras trocaram-me as voltas de novo. Para evitar que continuasse a procurar protagonismo, deram-me o papel de principal. E eu, feito criança, aceitei aquilo muito fácil

 

(abano a cabeça em negação)

 

Voltando à terra.


A bela adormecida foi interpretada por uma menina muito tímida. Não era de todo alguém que se relacionasse com uma pessoa como eu. Convínhamos, hiperativo e arruaceiro como eu era, tinha sorte se qualquer criança decente se aproximasse.

A Graciela é loura, olhos azuis um bocado estrábicos, mas apenas o suficiente para tornar o olhar interessante e não repugnante. Ou seja, ela tinha uma vista intrigante que docilmente atraía qualquer olhar para o dela. Falo da tal menina tímida a quem fiz referência há pouco.

Para que a representação da Peça de Teatro fosse apoteótica, todos os momentos vividos ao longo daquele ano – exceto quando atirava pedras à cabeça do pedro – giraram em torno daquele evento final.

Inicialmente senti uma grande resistência e distância por parte da Graciela. Entendo que a minha “fama” não tenha facilitado o processo, mas, ao longo de todos os ensaios, fui me comprometendo com a minha personagem e, eventualmente, a Graciela esqueceu-se de quem eu era e concentrou-se na figura que eu representava.

Atualmente eu entendo que, se o amor é um jogo, estar numa relação é ganhar. Importa dizer que muitas pessoas se concentram demasiado na vitória final e esquecem-se que é preciso haver uma convergência muito grande de fatores, para que o objetivo final seja alcançado. Sei que existem outliers, mas é por isso que se chamam assim.

Eu comecei a sentir uma presença calorosa em todos os instantes que estávamos a ensaiar. Não vou esconder o conforto por alguém sentir atração por mim. Depois daquilo que me aconteceu com a Celina, deixei-me levar e aproveitei tudo o que recebia. Já não era o arruaceiro e tinha me transformado no verdadeiro príncipe da história.

Há um momento neste Conto de Fadas onde o Príncipe tem que beijar a Bela Adormecida, para que esta acorde do sono eterno. A picada fatal na Roca assemelha-se à situação que foi por ela, inconscientemente, vivida nesta história de meninos e meninas do infantário.

Existe uma estupidez que vai se enraizando nas pessoas, à medida que vão crescendo e se tornando adultas. Estupidez esta que acaba por provocar um desfasamento entre o imaginário e a realidade, transportando-as para uma grande irracionalidade. Nesse sentido, elas acabam por construir cenários completamente errados e alimentam de forma muita negligente, ideias e pensamentos que acabam por destruir a inocência das crianças.

A expressão “eles ficam tão queridos juntinhos” diz-vos alguma coisa?

Eu, igual a mim próprio, disponível para representar de forma exímia o meu papel naquela peça de teatro, mal esperava que do outro lado estava alguém a desesperar por aquele momento, como se fosse o ponto de viragem na sua vida. Não vou mentir, nunca tinha dado um beijo consciente na bochecha de ninguém, mas nesta situação, aquilo que eu iria fazer não era, em nada, diferente da bênção que eu dava ao meu avô.

Apesar dos meus 5 anos, assumi a responsabilidade daquele momento. Era muito mais fácil quando a Graciela mantinha a distância de mim. Sentir que ela me queria por perto, fez-me querer estar longe. Não foi por desprezo. Nada disso. Mas por não querer alimentar algo que, da minha parte, não existia.

Eu respirei fundo e encarnei a minha personagem. Eu fui tudo aquilo que não sou. Que não era. Quero acreditar que a plateia assistiu embasbacada ao que estava a acontecer. Que grande momento foi protagonizado por mim e pelos meus colegas naquela incrível dramatização. Mas tudo aquilo resumir-se-ia a um momento.

Não sei se corresponderá à realidade, mas tem se tornado um padrão. A forma como a Graciela olhou para mim, após o beijo despertador, foi singular. Aquilo não foi só dilatação de pupilas devido à fraca iluminação. Foi muito mais do que isso. Para mim foi a descoberta de um olhar d’alguém que se sente intimamente ligado a outro alguém.

Tive dificuldades em digerir toda a informação. A Verdade é que, apesar de não sentir qualquer afeto por ela, eu deixei-me imbuir por todo aquele tilintar ocular. Fiz de conta que ainda estava em personagem e deixei-a viver aquele momento à sua maneira.

Foi, ao mesmo tempo, a maior aprendizagem e a maior mentira da minha vida.

Alguém que te olha como se fosses o centro do universo deve, se for recíproco, ser acarinhado e respeitado para todo o sempre. Caso contrário, não deixes criar laços emocionais demasiado permanentes.

Eu pensei na Celina, em tudo aquilo que tinha acontecido entre nós. Depois pensei em tudo aquilo que tinha acabado de fazer. Que mal me fez a Graciela? Eu não sabia se era culpado ou não. Não conhecia o sentimento.

Ficou a mentira …

 

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Sem ressentimentos,

ASS: Stero


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