E se fosses tu?

 


Lembro-me, tinha 4 anos. Estava no infantário e tudo o que mais queria, como todas as crianças, era que alguém reparasse em mim. Que eu fosse o foco de todas as atenções. As minhas memórias são parcas, mas o sentimento que me domina, quando recordo estes momentos, faz-me crer que o sucedido, valeu a pena. Aprendi.

O seu nome é celina. Quem é que conta histórias de amor dos 4 anos de idade?

Eu sempre fui, e sou, um ser insatisfeito. Faço questão de o demonstrar. Para ser assim é preciso aceitar que haverá muito pouca gente a querer estar perto de ti. Para qualquer tipo de relação. Mas imaginem isto aos 4 anos. Nem a minha mãe sabia o que fazer comigo, porque eu era demasiado.

Então, a Celina. Afirmo convictamente que foi o meu primeiro amor. Foi a primeira pessoa que conseguiu olhar para mim e ver mais do que aquilo que eu demonstrava ser. Mas não foi só isso que ela fez.

Cada vez mais vivemos numa sociedade onde o materialismo é Rei. Que as relações se medem pela quantidade de SMS’s que são trocados entre cada amante. Que mais vale ter um Carro topo de gama do que estar com alguém de quem gostamos realmente.

Eu, muito sinceramente, ainda batalho com as SMS’s. Não é só devido à motricidade para executar tais gestos delicados num ecrã de um smartphone, mas sim porque a ausência das relações humanas dá cabo de mim. Não entendo porque razão as pessoas se alheiam do melhor que podemos ter. A Relação.

Lembro-me como se fosse hoje. Ela chegou à “sala” como uma Outsider. Não conhecia ninguém, mas, como é normal em todos os lados, toda gente queria conhece-la. Não sei se foi a minha atitude de Bad Boy (aos 4 anos) ou alguma espécie de amor à primeira vista, mas a verdade é que, de forma quase instantânea, fomos empurrados um para o outro.

Eu sei quem sou. Não na totalidade, mas na maioria de mim próprio. Conheço-me.

Agora é muito fácil dizer tudo isto e, daqui a 30 anos, a autoanálise ainda será mais fácil.

Sei muito bem que aquilo que afasta as pessoas é, exatamente, na mesma proporção, aquilo que faz com que as pessoas se sintam atraídas por mim. Confesso que não é fácil viver assim, mas estou em paz comigo próprio. Para as poucas pessoas que se interessam, existem conflitos interiores bem piores.

Mesmo que trabalhemos para ter um coração de pedra, aparece sempre alguém com o condão de derreter e transformar toda a rigidez sentimental em algo útil, genuíno e bom. A Celina foi essa pessoa. A primeira pessoa a ver em mim o que mais ninguém conseguiu ver e a expressar aquilo que, até então, ninguém teria conseguido expressar.

Isso deixa-me onde, com o quê? 4 anos, apaixonado? Até hoje não consigo perceber o que se passou. Existe o AC e DC. E na Era DC só existem borboletas e unicórnios.

Não precisava ser acordado para ir ao infantário. O caminho de casa até lá já não custava nada. As conversas que a minha mãe tinha de manhã – porta-te bem; a professora é que manda; respeita os mais velhos – já não eram chatas. As 24 horas diárias foram convertidas em “Celinas”.

Não consigo explicar como uma bata do infantário, com restos de comida em cima e um nome mal escrito, pode trazer tantos sentimentos. A minha inocência arrastou-me para um imaginário onde só os príncipes e princesas vivem. Até hoje, continua a ser o sentimento mais caloroso e genuíno que me acompanha.

Eu decidi há muito tempo que a minha vida ia ser diferente. Não difícil, nem fácil. Diferente. Chegamos a um ponto onde é possível saber que tipo de decisões vamos tomar para tornar a nossa vida mais fácil. E eu, obviamente, escolhi ser EU.

Ninguém me entendeu melhor do que a Celina. Foi um ano escolar repleto de bons momentos. De alívio para as educadoras que não tinham de me aturar. Estava dominado. Foi um período onde tudo estava certo e, nada deveria ser diferente. A primeira vez que ela me deu a mão foi indiscritível. Eu senti tudo.

Já contabilizo algumas primaveras. Mas se hoje me perguntarem o que é o amor, muito daquilo que irei dizer, terá como base o momento que dei a mão, pela primeira vez, à Celina. Foi marcante e continuará a definir-me em todas as relações.

Até o dia em que descobri que ela iria embora. Que no final do ano escolar já não a voltaria a ver.

A nossa sociedade está formatada para modelos educacionais onde está estratificado o teor das aprendizagens em cada ciclo de estudos. Apesar de já ter passado por quase todas as etapas do ensino, ainda não encontrei respostas para a coisa que mais aflige. O sentimento.

Hoje, ao olhar para trás, sinto alguma ternura. Não sou filho de pais pobres, mas também nunca tive abundância material, como tantos outros. Isto não é uma queixa, muito pelo contrário. Tudo aconteceu corretamente no momento certo. Por não valorizar bens materiais, aprendi a valorizar o que de mais precioso existe neste mundo. O sentimento recíproco.

Já me tinham dito. Mas ela ainda não me tinha contado.

Foi no passeio do infantário. Nos habituais pares. Eu sempre seguia com ela, de mão dada. – Agora tenho a certeza que as minhas educadoras sofreram mais do que eu quando ela foi embora. Com ela, eu andava sempre certinho. – Como é que se descreve sentimentos que, na altura, nem sabia que existiam?

A lembrança da sua cara, a olhar para mim, com os seus olhos castanhos a brilhar, - imagem insubstituível – e com vontade de me dizer que depois daquele passeio, não nos voltaríamos a ver… escrever isto é complicado para mim, imagino ela ter que pensar e formular um diálogo que os adultos tentam não ter.

Assim pensava eu. Mas a verdade é que ela estava comigo por obrigação. Como eu estava sempre calmo com ela por perto, as educadoras obrigavam a Celina a estar comigo, para evitar perturbações nas atividades. Na verdade, ela gostava e sempre gostou do Pedro. Porque ele é mais alto do que eu, tinha os dentes todos e, ao contrário de mim, não se envolvia em conflitos.

Foi precisamente isso que os olhos castanhos me disseram naquele último passeio, convictamente, típico de uma criança 4 de anos. “Vou-me embora e vou sentir saudades do meu namorado Pedro”.

 

 [Silencio]

 

Sabem, na verdade todos os momentos passados até aquele instante fatídico foram fantásticos. Não existe nada, nem ninguém, que possa adulterar aquele período de múltiplas alegrias. Ingénuas

As minhas lembranças empurram-me para o pragmatismo sentimental. Se não sabia o que era ter alguém, desconhecia a dor da perda.

Mas ficou o vazio …


Sem ressentimentos,

ASS: Stero

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